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quinta-feira, 5 de julho de 2018

O Desenho

O Desenho
Senhoras e senhores:
Vou falar-vos do desenho e creio poder dizer-vos alguma coisa de novo sobre a mais antiga das expressões. Nenhuma outra forma de pensamento chegou até nós mais próximo do seu aspecto primitivo do que o desenho. Todas as origens se dispersaram pelas infinitas direcções do tempo e da geografia, mas as rochas conservam os traços que nem o tempo desfez nem a geografia mudará jamais.
Tem o desenho um sentido universal que o distingue de qualquer outra expressão universal do homem. Se fosse possível reunir os desenhos de crianças de todo o mundo e desconhecendo as respectivas nacionalidades, ninguém saberia, através desses desenhos, indicar as pátrias dos seus autores. As crianças de todo o mundo são iguais na espontaneidade dos traços instintivos do homem. São iguais até que o instinto deixa de ser a única força que as conduz. Em cada criança a natureza procede a uma renovação total como se fosse a humanidade primitiva, ela-própria, na pessoa da criança. Depois o ambiente influi sobre ela como a sua ascendência, e é então que ao lado do instinto começa a surgir a consciência.
No desenho há instinto e consciência.
O meu propósito é falar do desenho como força determinada que faz parte da vida de cada um, seja quem for, artista ou negação da Arte. (...)
Giotto, por exemplo, e independentemente da História, está dentro deste caso, com a sua autoridade pessoal. E para mais sabemos que Giotto não viu nunca outros pintores, não soube o que se tinha feito em pintura antes dele, não recebeu lições de arte de pintar e, ao contrário, como acontece na referida história, só viu a paisagem, as pessoas, a natureza, e sobretudo o que tinha dentro dos seus olhos. Desconhecendo toda a ciência e sabedoria da Arte, Giotto foi o iniciador da arte naturalista, representativa da arte europeia, ocidental.
Mas, repetindo, não falaremos da pintura, mas sim do caminho que conduz a ela. A pintura é já o campo da personalidade e nós vamos ainda a caminho desse campo.
E, embora não sejamos os donos da nossa personalidade e por longe que ainda estejamos de o ser, não teremos pressa de possuí-la antes do devido tempo. Nós seguimos o nosso caminho, seguros, mais atentos à nossa autoridade pessoal de hoje do que a uma personalidade que conseguiremos talvez um dia. Em verdade, o que imediatamente nos interessa é a nossa autoridade pessoal. Esta, sim, que já nos pertence hoje mesmo e antes de termos direito a uma personalidade.
Quer dizer, melhor, muito melhor que o valor da nossa arte de hoje é a claridade e a dignidade do nosso caminho até amanhã.
Neste momento em que ficam bem delimitados os diferentes conceitos de personalidade e de autoridade pessoal, meditemos um pouco sobre esta e deixaremos aquela aos que a têm já. Assim como há pouco nos abstivemos de falar de pintura, para ver melhor o caminho que nos conduz a ela, também agora a personalidade nos interessa menos do que a autoridade pessoal daqueles que a buscam. Temos, pois, um caminho até à personalidade: autoridade pessoal, e um caminho até à pintura: o desenho. Quer dizer, a pintura coincide com a personalidade, enquanto o desenho corresponde à autoridade pessoal. Deve ser este o sentido do que Ingres disse do desenho: «Le dessin est le probité de l'art».
O desenho não é, como pode julgar-se, simplesmente um conjunto de linhas ou traços, um gráfico representando qualquer coisa existente.
O desenho é o nosso entendimento a fixar o instante.
A célebre frase de Napoleão, dizendo: «vale mais um pequeno croquis do que um longo relatório» contém todo o sentido do desenho.
Ao contrário do trabalho, da construção que exige tempo, composição e volume, o nosso entedimento é rápido, claro e simples. A perfeição do entendimento é momentânea e, por consequência, há que fixá-la.
Por isso o desenho é o melhor amigo do entendimento.
É corrente, quando alguém não percebe o que se lhe diz, acrescentar: precisas que te faça um desenho?
E o facto é que este é o processo definitivo.
De uma boa descrição literária se costuma dizer: parece um desenho. Não é indispensável fazer linhas ou traços para desenhar.
Tudo o que contém clareza de entendimento tem a função do desenho.
Mas entendimento não é o mesmo que inteligência. Esta é a ligação e a harmonia entre os entendimentos pessoais.
O povo que não conhece a palavra inteligência tem, todavia, o seu entendimento. Diz a gente do povo de quem sabe muito: que boa memória tem! Quer dizer, memória é o que fica para sempre no entendimento.
Perguntaram a alguém porque desenhava e este respondeu: para fixar a atenção.
Um livro do século XVIII sobre o desenho começa com estas palavras: «o desenho é a única maneira de fixar a atenção».
E a verdade é que não sendo todos desenhadores, todos temos desenhado, Porquê?
É necessário o respeito pelo desenho.
O desenho, se marca a nossa iniciativa, começa por impor-nos uma obediência absoluta, única condição de êxito. E esta obediência não é senão a nossa lealdade para com nós-próprios, para com os nossos sentidos, orgãos do entendimento.
Se o entendimento ao abrir o seu caminho parece agressivo perante a inteligência humana, bom é que o parece para depois provar que o não foi.
É tão pessoal o entendimento que, quando não oferece originalidade desaparece o autor.
Nós, das raças meridionais, onde a precocidade é espontânea e natural, devemos buscar a compensação no oposto, isto é, na maturidade.
Pascal, que não é da nossa raça, tem autoridade para nos dizer que no melhor livro do mundo, o catecismo, há um erro grave no que se refere à idade da razão. Diz Pascal que a idade do uso da razão é muito posterior. Mas antes de chegar a esta idade e no nobre sentido que lhe atribui Pascal, já a consciência tem o seu papel na função do entendimento. É já a autoridade pessoal de cada um quando, contudo, ainda não é consciente nem desfruta da sua personalidade: é o segredo pessoal.
A atenção pelo desenho em nossas forças iniciais ou instintivas é a base de formação da nossa personalidade futura.
Duas épocas tem o desenho: a primeira, epoca da atenção respeitando o instinto, a outra, a da correcção do instinto procurando a harmonia. Passa de sinceridade primária ou romântica à impossibilidade construtiva ou clássica naquele mesmo sentido em que Ingres definiu a obra clássica: a que não faz rir nem chorar.
O desenho tem o seu valor e o seu limite. O desenho é o meio e o homem a finalidade.
Porém, aqueles que procuram, principalmente, a própria expressão vivem muito preocupados com os aspectos da época do que com o valor do próprio entendimento.
Preocupa-os demasiado a palavra modernismo.
Seguramente ignoram que a personalidade não se recebe dos outros, mas sim necessita que cada um a liberte de si-próprio.
Então, onde fica o modernismo para aquele que procura, todavia, a sua personalidade?
Uma época não é apenas uma questão de tempo mas essencialmente um sentido do novo no eterno.
Tão-pouco a novidade é uma impressão recebida do exterior - mas é o próprio fundo da alma que faz sua aparição do sol.
Entretanto, os artistas de hoje vivem preocupados com o estilo caligráfico do nosso tempo, julgando-se descobridores da autêntica novidade.
Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira de ser.
Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade.
O pintor Henri Matisse manteve duravante anos uma academia, até que um dia e sem dizer nada a ninguém, a abandonou para sempre. Entretanto, os seus discípulos continuavam a esperá-lo para o prosseguimento das suas lições. Intrigados de princípio, depressa compreenderam que o mestre alguma coisa lhes queria significar com a sua ausência.
Um dia um discípulo encontrou-o a pintar um porto de mar.
Porque nos abandonou o mestre?
Porque, depois de tantos anos de academia não consegui nunca que um só dos meus discípulos fizesse um traço, uma linha que fosse sua.
Tinha razão Henri Matisse. O seu apostolado da arte produzia, afinal, nos seus discípulos um resultado igual ao que ele tão decididamente combatia. E assim a sua experiência levou-o à mesma conclusão de Picasso: Não há discípulos, há só mestres.
O erro do que estuda não é sofrer as influências dos mestres mas sim ficar preso da influência de um único.
É a nossa admiração pelos vários mestres que melhor pode conduzir-nos ao descobrimento da grande novidade: a nossa personalidade.
O homem moderno não fixa nunca a sua posição, nem antes, nem durante, nem depois da sua personalidade.
Disse Balzac que o mundo se divide em três classes de pessoas: os ociosos, os ocupados e os artistas. Quer dizer que o artista não é nem ocioso nem ocupado. Pois bem, é esta em definitivo a expressão do homem moderno: a de artista.
Não é a ociosidade o que nos apetece, nem a ocupação o que procuramos. Amanhã o mundo saberá o que é.
(in Manifestos e Conferências, Assírio & Alvim, 2006, pp. 149-156).
José de Almada Negreiros

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